quarta-feira, 23 de março de 2016

Nota sem som é inútil

Quando eu tinha dez anos de idade e estava na quinta série, tive minha primeira discussão por algo que acredito. Era uma aula de filosofia e meu professor se referia a Deus como "aquele cara", em tom de desdém. Então, levantei minha voz indignada e pedi respeito. Meu professor - surpreso - tentou se justificar. Eu o afrontei e argumentei com ele durante bons minutos. Ele acreditava em algo. Eu acreditava em outra coisa.

Esse mesmo professor acabou me pedindo desculpas e disse que ele realmente deveria respeitar quem tinha fé como eu.
 Esse mesmo professor, no final da aula, me chamou num canto e pediu pra eu não me limitar a uma crença imposta e me aconselhou a ler O Mundo de Sofia de Jostein Gaarder. Eu, mesmo criança, não era fechada a novas ideias e no mesmo dia enlouqueci minha mãe para comprar o livro. Então, li o tal livro com mais de 500 páginas aos dez anos de idade. Me apaixonei por filosofia e, por conseguinte, pela literatura.

Entendi a visão do professor, respeitei, no entanto não precisei mudar a minha
. Não precisei. Mas quis entender a dele. Me permiti acolher o lado oposto da minha opinião. E sabe, não doeu.

Sim, desde os meus dez anos sou leitora de diversos gêneros literários. Desde a literatura chata e insuportável que a escola me obrigava a ler, como os livros que eu buscava por conta própria e que me tentavam a deixar de fazer as lições de casa para dar mais atenção a eles. Enquanto a escola me mandava ler “A ilha do tesouro”, eu ia à biblioteca e pegava pra ler todas as obras de William Shakespeare.

Mas a filosofia sempre foi um amor estonteante e volta e meia me pegava novamente. Sofia tinha encalacrado na minha alma e desde que li sua história, eu nunca mais olhei pra algo sem me perguntar “por que?”. Eu quando eu vi, já estava lendo Nietzsche.

Aos onze anos, escrevi minha primeira poesia. Olhei pra fora e vi esperança numa singela árvore. E me assustei com a frieza da filosofia.
 A filosofia me fazia pensar, me muniu da capacidade argumentativa, da análise do discurso, no entanto percebi que deixamos de ser humanos quando não sentimosEntão, passei a alimentar minha sensibilidade poética, sem emudecer a racionalidade incrível que a filosofia tinha me dado.

Uau! Que menina inteligente, não é mesmo?

Errado. Não era isso que eu ouvia. Nunca fui boa aluna. Ficava louca nas aulas de matemática, não suportava as aulas de Língua Portuguesa e durante as explicações dos professores eu escrevia. Escrevia textos e mais textos para um amor que eu ainda não havia sentido. Escrevia na esperança de um dia sentir. Escrevia aquelas coisas inúteis e desnecessárias e deixava de fazer as tarefas que me eram impostas.

Mas, quando o professor de história e o de filosofia entravam na sala, eu parava tudo que estava fazendo pra prestar atenção. Nunca esqueci o que foi o Tratado de Tordesilhas, Pacto Colonial, Revolução Francesa, tática de terra arrasada, quem foi Napoleão Bonaparte, Sócrates, Platão, Aristóteles - não necessariamente nessa ordem - e entre outros. Mas eu não era boa aluna.

Então, aos 15 anos, me deparei com outro professor de filosofia. Um professor que em sua primeira aula leu para a minha turma A Tabacaria de Fernando Pessoa.
 Poesia que até hoje é a minha preferida e, mesmo sendo absurdamente extensa, eu sei de cor e posso recitar pra quem quiser ouvir. Porque foi aí que poesia e filosofia se entrelaçaram num abraço cheios de laços que eu nunca mais desatei.

Esse professor nos falava sobre o germe da revolta. Criticava o nosso modelo de escola, educação. Incitava-nos a questionar tudo.
 Contava pra gente das suas épocas de adolescente, militante e poeta. Mostrava-nos a cada aula que ser jovem e não ser revolucionário era uma contradição genética.
Foi a partir desse momento que comecei a olhar pra política mais de perto. Comecei a me aprofundar em alguns assuntos, enlouquecia meus amigos com meus discursos e pensamentos histéricos e indignados. André Guilherme, meu melhor amigo na época, que o diga!

Comecei a ter coragem de mostrar para as pessoas o que eu escrevia e fui incentivada a criar um blog, esse blog, para que mais pessoas tivessem acesso aos meus escritos. Acreditei que podia escrever e que - quiçá - eu até soubesse escrever. Fui bastante ousada no meu pensamento, admito. Mas hoje percebo que a ousadia é mais do que necessária.

Meus primeiros textos falavam da minha revolta com o povo e com a política do nosso país (deem uma olhadinha nos arquivos de 2012/2013 do blog). E, nessa época, eu bati de frente com muita gente. Na minha cabeça, eu acreditava que pra mudar algo na política era necessário que eu começasse pela minha própria cidade. Comecei a acompanhar o que acontecia perto de mim e não hesitei em criticar diretamente os governantes daqui quando eu não concordava com algo.

Tenho amigos no site facebook  que me adicionaram justamente porque viram um texto crítico que escrevi na página do prefeito da minha cidade. E DEIXA EU CONTAR UMA COISINHA PRA VOCÊS: Ele é do PT. E sim, ele foi o melhor prefeito que nossa cidade já teve, mas isso não quer dizer que seja perfeito. E eu apontei as imperfeições visíveis. Porque não, eu não defendo ilegalidades, eu não defendo corrupção, eu não defendo nada de errado na política. Mas eu só me posiciono diante de alguma situação quando ela é concreta. Quando há provas irrefutáveis de algo. Porque eu abomino injustiça e nunca fundamentei o que acredito na base no achismo.

Bom, após um tempo de construção intelectual, muita leitura, muito estudo, como eu disse, entendi que a poesia podia ser crítica também. Na verdade, a poesia é feita de muita filosofia.
 Para a minha surpresa, nessa mesma época, a professora de literatura da escola nos passou o tema do texto que teríamos que escrever para o livro da escola. Os melhores iriam para a glamourosa noite de autógrafos. O tema era “Com licença, eu vou à luta!”. E eu, tomada pelo sentimento do momento, escrevi mais uma vez sobre política e fui para a tal noite autografar os livros que acolhiam a minha poesia.

Continuei escrevendo. Nunca parei.

Então, sofri meu primeiro choque de realidade. Após nove anos estudando num colégio particular, fui obrigada a ir para a rede pública de ensino. Ouvi os mais absurdos e preconceituosos discursos. Coisas como “Nossa, que pena. Justo no terceirão? Você nunca vai passar no vestibular desse jeito”; “Você vai mesmo? Que medo por você, estudar em colégio público deve ser horrível!”; “Justo no tenente? Lá só tem bandido, morte, é perigoso. Parece até presídio”; “Meu maior medo sempre foi estudar no tenente. Que dó de você!”.

Sim, ouvi isso dos colegas que sempre estudaram comigo em colégio particular. Colegas que nunca tiveram que encarar a realidade de perto. Colegas que baseiam suas opiniões políticas no que os pais burgueses acreditam. E queria muito que eles estivessem lendo isso, porque eles precisam saber que colégio público não é filme de terror. Colégio particular é que é conto de fadas demais e cria pessoas dentro de bolhas, não permitindo que tenham acesso à realidade. Colégio público é vida real. E é maravilhoso!

Pode até ser que o colégio público não prepare os alunos para o vestibular, mas faz algo muito melhor. Colégio público prepara os alunos pra vida. Prepara os alunos para a realidade social. E eu pude experimentar um pouco disso. Eu pude sair da utopia que eu vivi durante muitos anos da minha vida.

Passei a entender a importância das greves e vi que isso não era coisa de gente que não queria trabalhar. Bem pelo contrário, era coisa gente corajosa que trabalha muito e ama o que faz, e por isso luta por melhores condições de trabalho. Entendi que há governos que TENTAM melhorar a educação, que dão ouvidos aos brados dos professores. E que há governos que nem direcionam o olhar para a realidade escolar pública e pra não serem incomodados com ladainhas chatas de vagabundos que exigem demais, dão um jeitinho de calar as vozes com bala de borracha, gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral e até Pitt Bulls raivosos.

Nesse colégio público, me deparei com um professor de sociologia que fazia das suas aulas um eterno debate político. O que eu gostava bastante.
 Em uma das suas aulas, pedi licença pra recitar um poema que eu tinha escrito e que se intitulava "Ditadura camuflada". E o meu professor de sociologia, que também dava aula na Universidade Federal do Paraná, começou a divulgar meu blog para todos os seus alunos. Porque nesse colégio, eu comecei a ser valorizada por ser boa naquilo que eu fazia.

Nesse ano, tivemos uma semana cultural no colégio com o tema TROPICALISMO. Sim, que alegria a minha!
 Estudamos o movimento, ouvimos Caetano, Chico, Gilberto, Elis, etc, com tanta frequência que eu não queria que aquilo acabasse. Na apresentação da minha turma, fui convidada a recitar outro poema de minha autoria para o colégio inteiro ouvir. Falei sobre opressão e liberdade. Frieza e sensibilidade. Ódio e amor.
Entendi, de verdade, a gravidade de uma ditadura. Tive náuseas. Senti pavor. E suspirei com gratidão por não ter nascido numa época de repressão. 

Nesse ano, eu já não sabia se queria ser professora de Filosofia ou Sociologia, ou se queria cursar Direito.

Então, no segundo semestre, conheci minha nova professora de Língua Portuguesa. Uma professora que ensinava com tanto amor que eu me apaixonei.
 Dava pra ver nos seus olhos cansados, no seu humor alterado, o quanto ela lutava pra não desistir da sua profissão. É evidente que não é fácil ser professor, mas ela mostrava diariamente que valia a pena lutar pra ser.

Ela dizia que eu tinha talento com as letras. Me incentivava a continuar escrevendo. E dizia que eu daria uma boa professora de Literatura. Que seríamos colegas de profissão um dia.

Meses depois, tivemos a segunda semana cultural, a semana do teatro. E eu escrevi uma peça intitulada "Romeu e Julieta nos dias atuais". 
Nessa peça eu criticava a desigualdade, o preconceito, a divisão da humanidade alimentada pelo ódio e pela violência. A descomunhão que as diferenças causavam quando poderiam muito bem se unir em prol do bem estar comum. Que as diferenças quando colocadas sob a lente da intolerância, matam.

Ganhamos o festival. Fomos premiados. E houve bastante revolta das outras turmas, julgando que não éramos merecedores da vitória. Isso me deixou muito feliz também. Gostava de sentir os jovens inconformados, se expressando. Tinha medo era do conformismo. Mas me orgulho - e muito - da minha vitória.

Foi nesse colégio que decidi que queria ser professora. Que a educação era a única forma de mudar o mundo e que isso levaria milênios, mas que eu gostaria de fazer parte. De fazer a minha parte.

Nas aulas de história, estudamos a fundo o nazismo com uma professora tão incrível quanto a de Língua Portuguesa. E mais uma vez eu entendi o que era alienação. E até hoje tenho medo dela. Porque a alienação cega. A alienação prende. A alienação mata.

Hoje, eu sou graduanda de Letras. A maioria dos meus mestres são, assim como eu, defensores da esquerda. Meus colegas militam diariamente pela igualdade. Convivemos com uma pluralidade incrível de ideologias. E todos os dias eu vejo algum deles sendo insultados por pessoas que formaram sua ideologia política com base na mídia e no próprio facebook. Ou pior: que só agora, diante da histeria da população, resolveram assumir uma posição política. Que nem sabem o porquê de defenderem o que defendem, mas gritam o que pensam porque é bonito. É preciso. Todo mundo precisa estar de algum lado e se for do lado oposto ao meu, é guerra!

Estou dizendo tudo isso, porque minha caminhada pra construir o que acredito foi longa. Foi à base de muita busca pelo conhecimento. Estudei muito pra criar uma opinião própria sobre as coisas. E não, não comecei isso hoje ou ontem. Comecei isso há anos. Não discuto política agora. Discuto política há bastante tempo, basta dar uma olhada nos arquivos daqui.

E assim como eu levantei minha voz aos dez anos de idade, diante de uma turma de quinta série, pra defender o que acreditava, continuarei levantando minha voz hoje.
Podem criticar minhas opiniões, só não me julguem ignorante ou desinformada, porque isso eu nunca fui. E antes de defender um lado, eu sempre busco conhecimento sobre o outro lado também. Tentem fazer esse exercício. Acreditem, é muito bom.

Não escrevi esse texto pra defender Lula ou Dilma. Pra gritar “Sou PT!”. Escrevi tudo isso pra ME defender. Escrevi tudo isso porque estou cansada desses discursos de ódio exacerbado que não levam a lugar nenhum. Escrevi pra esclarecer que não sou ignorante, burra, imoral ou antiética. Escrevi pra tentar dizer que nunca vou acreditar que alguém é bandido só porque outro bandido está me dizendo isso.

Vão às favelas. Lá, policial é que é bandido.
Vão nas saídas dos colégios da periferia. Lá você não tem o direito de se vestir como quiser, porque uma calça caída e um moletom largo já é o suficiente pra levar revista da polícia e ser humilhado na frente dos outros.
Vão aos presídios. Lá tá cheio de bandido que roubou farinha e leite e foi condenado. Enquanto aqui fora, está cheio de advogados vestidos com o manto da moral defendendo o cara que estava dirigindo carro de luxo em alta velocidade embrigado e matou pessoas, mas não é condenado porque quem morreu é pobre e quem matou é rico.

E aí? O que, de fato, é moral? O que, de fato, são valores?
Bandido bom é bandido morto? Bandido tem que ser preso?
Mas, qual bandido?

Vamos refletir... Vamos, sobretudo, pensar antes de falar. Pode ser?

Um parênteses...
Li o desabafo de uma prima minha no facebook entristecida com aqueles que zombavam a crise do país. Segundo ela, isso constrange quem está sofrendo com o desemprego e com as consequências da situação econômica atual do Brasil.
Às vezes, caímos no erro de brincar com as coisas, como forma de afrontar o outro que brinca conosco também. Então, brindamos a crise em resposta àqueles que gritam “Impeachment já!”. Não é que não vivemos a crise. Não achamos que a crise não existe. Mas ironizamos a crise como forma de dizer “parem de usar isso como argumento pra tudo, o país já passou por situações piores”. Mas como eu disse, é um erro. Esquecemos que há pessoas que podem se ferir com a brincadeira. Brincadeira, de fato, desnecessária. E agradeço por esse desabafo, porque como eu disse, estou sempre aberta. E isso me fez refletir acerca das minhas próprias zombarias. Concluí que é preciso levar a situação mais a sério.

A situação política do país está caótica. Mas acreditem, já foi muito mais caótica do que hoje. É preciso se posicionar, sim. Mas, por favor! Não se posicionem influenciados por tudo que leem e veem por aí. Vamos, sobretudo, defender a nossa recém nascida democracia, que possui muitas falhas ainda, mas que precisa amadurecer antes de ser abortada.

Não censurem o próximo. Não sejam ditadores.
Como diria Ique: Façam amor, não façam guerra.

Grata,
Betina Pilch.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Entre palavras e paredes – Por Betina Pilch


Parede. Parede. Parede.
Pa-re-de.
Por que parede se chama parede? Essa palavra não faz sentido pra mim.
Parede. Parede. Parede.
Por que parede se chama parede e não chão?
Para com isso, Betina. Deixa eu dormir. Eu não quero pensar sobre isso. Você está fazendo as palavras perderem o sentido, dizia minha prima já irritada com a minha tagarelice no meio da madrugada.
E eu continuava pensando...
Parede. Parede. Parede.
Pa-re-de.
Sério, pensa comigo. Realmente não faz sentido.
Cala a boca! Chega! Deixa eu dormir.
Poxa vida. Eu não estava fazendo as palavras perderem o sentido. Pelo contrário, estava buscando um sentido para elas. Mas é claro que nenhuma criança de sete anos teria paciência para acompanhar minha curiosidade. Sim, desde pequena as palavras me intrigavam, encantavam, espantavam...
Sempre fui uma grande esquizofrênica das letras. Elas ecoavam no meu pensamento com sua sonoridade singular e sua grafia ficava dançando na minha mente até eu ficar tonta. Quando as letrinhas resolviam escolher um par e formar silabas para, depois, fazerem amor e dar a luz às palavras, eu ficava inquieta. As palavras tinham muito poder. Eram um conjunto de letras de mãos dadas que formavam sons e imagens. Sim, imagens. Eram as imagens que me intrigavam. Quem é que determinou que aquela família de letrinhas formariam a imagem de algo?
Por que a palavra parede dava luz à imagem de algo duro e frio que dividia os cômodos da minha casa? Antes de parede ser parede era o que?
Mãe, por que parede se chama parede e não chão?
Não sei, filha. As palavras são o que são.
Ah, não! Então alguém saiu por aí dando nome para as coisas, sem pensar num sentido pra isso?
Aquilo me aborrecia. Me aborrecia tanto que eu precisava dar uns tapinhas na minha cabeça e implorar para pensar em outra coisa. Mas não adiantava. Bastava um pouco de silêncio e tédio para as letrinhas voltarem a dançar dentro da minha cabeça. Peguei certa birra da palavra parede. Ela nunca fez sentido pra mim. Eu batia nela e perguntava "por que você se chama parede?" e logo em seguida ria ironicamente pensando, você não fala, por que estou falando com você?
De repente, achei engraçado querer que a parede soubesse o porquê do seu nome. Eu mesma não sabia por que me chamava Betina.
Mãe, por que meu nome é Betina?
Porque significa "promessa de Deus".
Ué, como assim?
Vem do hebraico. E o significado é esse.
Foi aí que comecei a entender a origem das palavras e aquilo era mágico pra mim. Mais tarde fui entender o que era prefixo, radical e sufixo. Nossa! As palavras eram realmente encantadoras.
Cresci e me assumi uma grande amante das palavras. Difícil não precisava ser difícil se podia ser complexo. Beleza não precisava ser beleza se podia ser venustidade. Então passei a buscar pelos sinônimos mais bonitos de todas as palavras que eu conhecia.
Textos e mais textos. Como era bom escrever por escrever. Até que um dia percebi que não escrevia apenas por prazer, escrevia por necessidade.
Quando o buraco aqui dentro me consumia, eu escrevia na tentativa de preencher.
Quando as coisas aqui dentro me afogavam, eu escrevia para transbordar os acúmulos.
Escrever era alívio. Era salvação. Era liberdade.
Escrevia para matar e imortalizar, e foi assustador perceber que imortalizei certas mortes.
Escrever tem esses paradoxos. Escrever é magia pura. É preciso ter cuidado com o poder das palavras.
Cresci odiando paredes. Essa palavra ainda não faz sentido pra mim. Eu não consigo gostar daquilo que não sente. Tudo que não tem sentimentos, não faz sentido pra mim. Porque, pra mim, sentido sempre foi fruto de alguma conjugação do verbo sentir e nada mais.
Paredes dividem. E eu odeio separações e matemática. A criança que eu fui (e que ainda mora aqui dentro de mim) estava certa em não confiar nas paredes. E hoje sei responder a sua pergunta insistente. Por que parede se chama parede e não chão?
Se parede fosse chão, seria caminho e não empecilho. Seria continuidade e não limitação. Seria liberdade e não prisão.
Continuo não gostando de paredes. Mas aprendi que é possível fazer essa palavra provar do próprio veneno. Aprendi que posso construir uma parede entre as silabas das palavras e formar outras. Pa|rede pode ser rede a me balançar pelos ares ou a me lançar na imensidão do mar.
Hoje não sou construtora de palavras. Sou demolidora de silabas. Transformo amar|gor em amar. Lament|ação em ação. Lou|cura em cura. E assim me tornei uma sobrevivente de mim mesma salva pelas letras. E nada desperta em mim o medo de viver - porque sei que as páginas sempre irão me socorrer.